quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Carta a Bety Calligaris

Querida Bety:
            
Como você bem sabe, não consegui nenhuma espécie de transferência naquele meu trabalho com a analista de cá e, assim, confesso certa decepção com tal sistema de tratamento, lembrando que conversar contigo sempre foi — e continuará sendo — minha melhor terapia. Porém, escrevo-te hoje para lhe contar algo que me deixou perplexo, e somente quem tem bom conhecimento de minha pessoa, independente da psicanálise, pode entender o ocorrido.
            
Fui trocar aqueles livros que ganhei de presente da Tia, pois é difícil mesmo saber que não gosto de romances traduzidos, salvo raríssimas exceções. E a livraria estava lotada, cheia, fila absurdamente grande como nunca vi. Também, estranhamente falando, fui atendido rápido e por uma vendedora muito simpática. Bom, carta de crédito na mão, saí a procurar um livro de meu interesse e, aí assim, começa o inusitado da experiência.
            
Querida Bety, você bem me conhece e já me viu no passado numa dessas livrarias e sabe o quanto eu parecia uma criança numa loja de brinquedos. Contudo, fiquei por cerca de duas horas e entendi porque a livraria estava lotada: não consegui encontrar um livro só que me agradasse para efetuar a troca, ainda que eu disposto a pagar significativa diferença.


A literatura foi dominada pela mais completa banalidade, histórias de leitura fácil, rápida e um monte de seres imaginários. No setor de música, quase nada, paupérrimo. Acredite se quiser, rodei todas as estantes da livraria de três a quatro vezes, e não encontrei um livro sequer do meu agrado, em nenhum dos segmentos.
             
Ainda mesmo na área técnica, nada. Para dizer a verdade, o único que me interessou (lembranças da minha época do Liceu) foi o Prática das Pequenas Construções que foi revisto e atualizado. Porém, agora, são dois volumes e o primeiro deles encontra-se num valor alto, em minha opinião, para a quantidade de páginas: R$ 109,00.
         
Roda e roda, comecei a entrar em desespero, e apelei: mesmo contra meus atuais princípios, fui para o setor de literatura nacional. E, por mais que procurasse, não achei na estante nenhum livro do Guimarães Rosa ou do João Antônio. E dá-lhe livro de auto-ajuda, Ana Maria Braga, e por aí vai. Também, não encontrei nenhum destaque de autores nacionais mais recentes, como o Marçal Aquino ou o Mirisola (tem de ir na Livraria Realejo mesmo).
            
Quase desistindo, pensando em ir embora sem efetuar a troca ou doar meu cupom de reembolso para terceiros, eis que me deparo com o livro do Pondé, Contra um Mundo Melhor.

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Lembro-me de que você não gosta muito do Pondé, que ele vai por outra linha, ou algo assim, porém, é um livro de desesperança, que mostra que a vida não tem sentido e, portanto, a sociedade não tem mesmo solução.  Bety querida, ironicamente, foi a minha salvação para a troca do livro, pelo menos consegui encontrar algum autor que pensa, que avalia a sociedade contemporânea e critica o mundo em que vivemos. E, como o Hardy Har Har, não nos deixa nenhum resíduo de esperança.

           
Do lado de fora do ar-condicionado, os mendigos continuavam tomando conta da rua, dormindo ao lado de mochilas e baldes plásticos, estendendo aos transeuntes seus pés encardidos. Em pleno Gonzaga, outro dormia sem camisa, esticado na murada do shopping onde, logo após o pequeno jardim, três jovens rodavam “na boa” um baseado. Em outro ponto do trajeto, na presença dos pais, crianças subiam em monumentos públicos como parque de diversão fosse. E eu preciso tomar cuidado para não jogar um papelzinho de bala no chão ou a prefeitura me multa.
            
Chegando em casa, o bar daqui de baixo continua ocupando o espaço da calçada,  e também o meio-fio, sendo eu obrigado a caminhar pela faixa de rolamento. Do lado oposto, outro vagabundo drogado flanelinha continua sentado em sua cadeira de plástico e se alimentando com prato de vidro e garfo em pleno espaço público, deixando os restos na calçada, caso contrário perde a chance de achacar o motorista que tenta estacionar.
            
E o turista descarrega de seu carro 15 packs de cerveja para passar do dia de hoje até o a virada do ano, porque aqui na praia “vai ser o maior barato”.

        
O Genoíno e o José Dirceu vão continuar se dizendo inocentes e sentindo-se heróis injustiçados, enquanto o Lula vão continuar afirmando que não sabia de nada. A Dilma vai ser reeleita em 2014 e os governantes vão continuar alimentando essa miséria toda, dando uma série de benefícios ao povo carente. Teremos Copa do Mundo e Olimpíadas. E, de fato, vão continuar no poder por tempo indeterminado.


Querida Bety, somente agora entendi a minha mensagem do final do ano passado. Na realidade, os maias estavam certos: o mundo acabou mesmo em 12/12/12. Apenas se esqueceram de nos deixar avisados.

E dá-lhe pandeirinho...

Feliz Ano Novo.



sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Ajuda social ou fascismo higienizador?

Algumas cidades do litoral, além dos tradicionais turistas, costumam receber um grande contingente de moradores de rua vindo de outras regiões.

Como pode ser rapidamente descoberto, a maioria esmagadora desses pedintes, sem-teto, chegou a esse estado por toxicodependência, alcoolismo ou problemas de natureza psiquiátrica. O estado de dependência química e moral dessas pessoas é tal que, por si só, dificilmente encontram forças de reação para saírem dessa situação que, sinceramente, considero muito estranho qualquer pessoa intelectual ou filosoficamente ativa possa considerar como escolha pessoal.


Ainda hoje, dei atendimento a um deles, um ex-diretor de empresa que, devido ao alcoolismo, chegou a essa situação de morador de rua, e saiu perambulando por aí. Perguntado, disse ser natural de Balneário Camboriu, Santa Catarina, e optou em morar na cidade de Santos porque, quando na ativa, veio fazer um trabalho aqui na cidade e gostou. Também, nesta cidade encontrou o auxílio-social que não encontra em sua cidade natal, e, por aqui, aos poucos, pretende retomar a vida.

No geral, a cidade oferece um aparato social de atendimento que, se não é perfeito, pelo menos, tem servido de modelo para outros municípios. E me orgulho de fazer parte de um deles, a Defensoria Pública da União — DPU, onde damos assistência jurídica a pessoas hipossuficientes. Portanto, é com contentamento que digo participar ativamente em conseguir juridicamente alguma ajuda financeira a essas pessoas por meio dos instrumentos legais existentes.


Há menos de duas semanas, um artigo do amigo e médico psiquiatra Thiago Fidalgo, coordenador de importante programa para dependentes químicos (PROAD/UNIFESP), publicado na Folha de São Paulo, de forma técnica, por meio de pesquisas da Fiocruz, divulgou que 80% dos dependentes de crack  desejam tratamento, mas somente 20% conseguem ter acesso ao sistema de saúde, e por aí vai. E da necessidade da forte intervenção do Estado em alimentação, moradia ou de alguém para simplesmente ajudar a tirar de novo os documentos perdidos. No caso de meu trabalho, a Defensoria da União auxilia nas questões jurídicas de BPC-LOAS, auxílio-doença ou aposentadoria, além de encaminhamento para outros órgãos públicos.


O que me incomoda, porém, e que me levou a escrever esse artigo?

É caso parecido ao que ocorre em Santos está acontecendo em Canasvieiras, uma praia de Florianópolis, e parte da população saiu às ruas exigindo providências dos órgãos públicos municipais, estaduais e ou federais, para a solução do problema.

E estão sendo tachados de fascistas, que desejam a “limpeza social” (!). São ameaçados fisicamente e universitários distribuem panfletos pró-moradores de rua (!).

Foto da manifestação, clique para ampliar

É óbvio que ninguém está querendo acabar com a pobreza querendo acabar com os pobres, como queria o Justo Veríssimo, personagem político clássico de Chico Anísio; mas sim atuação dos poderes públicos para minimização do problema. Basta assistir ao vídeo da mesa-redonda promovida na região e rapidamente isso fica bem claro. Então, de novo, por que fascismo higienizador?


Poderia ficar aqui elencando um grande número de inconvenientes e problemas trazidos por essas invasões de moradores de rua, porém, desnecessário me estender nisso. Prefiro expressar meu estranhamento quanto a considerar fascismo o fato de querer atuação dos poderes públicos em grave problema social. Um resquício, talvez, do pensamento da Sociedade Alternativa, de Raul Seixas, onde qualquer homem tem o direito de viver como quiser e morrer como quiser, como se você pudesse estacionar o seu veículo em local público, ligar um conjunto diabólico de caixas acústicas e promover bailes funks, como fazem, sem que os moradores do local possam reclamar de algo, porque “cada um tem o direito de fazer o que quiser de sua vida” (!).

Ou partem do pensamento de uma esquerda tendenciosa que tem interesse em se alimentar dessa miséria toda, e que não consigo abarcar? (lembrando de que familiares meus estiveram na fundação dos movimentos anarquistas e comunistas no Brasil, tendo sido o pensamento de minha família pautado nesta tônica ao longo dos anos).

Ajuda social, fascismo higienizador ou o quê?

Deixo ao cargo do leitor a resposta.