segunda-feira, 29 de agosto de 2016

O corpo de Reminda Dolefulina

Olá, amigos, tudo na vida tem começo, meio e fim. Este blog iniciou com um pensamento, ao longo do tempo, passou para outro, porém, ninguém tem mais tempo a perder de ficar lendo isso ou aquilo. Nem eu mesmo, confesso.
Portanto, faço aqui minha publicação final e, para tanto, relembrando as minhas andanças nos 5 anos que pertenci à Oficina de Escritores, faço um conto curto como lá fazíamos (menos de 500 palavras) e, deste modo, o blog se despede, lembrando aos mais íntimos que, aqui mesmo, me despedi da literatura.
Caso algum dia um blog meu renasça (acredito em reencarnação), será algo diferente, porque tudo muda e, assim esperamos, para melhor.
Portanto, bye-bye, so long, farewell. Que Deus nos proteja e ilumine.


O CORPO DE REMINDA DOLEFULINA 
Numa manhã ensolarada de sábado, após o Instituto Médico Legal finalizar o exame no corpo gélido de Reminda Dolefulina (45 anos de idade, estado civil indefinido), emitiu-se o seguinte parecer: “libere-se o corpo ao responsável”.
Aí começou o problema.
Por parte dos envolvidos ninguém se julgava “o responsável” em abrigar e dar sumiço àquele corpo. Alegou-se que, nos dias de hoje, pouco se pode preocupar com velórios, que se trata de formalidade social. Ainda por cima, ninguém se prontificou a bancar esses custos, pois — há de se reconhecer— objetos mortos não são vistos mesmo como prioridades. Porém, percebeu-se logo que o maior custo que se apresentava não se tratava do econômico, mas do emocional. E, aí, pior ainda, é que ninguém quis mesmo se dar ao trabalho. Alegou-se que a culpada da morte seria a própria Reminda ou a doença que daquele corpo se apoderara: síndrome de aspiração meconial.
Ocorre que tal doença é resultado do acúmulo do líquido amniótico com mecônio nos pulmões ocasionando insuficiência respiratória nos recém-nascidos, podendo acarretar a morte. Agora, perguntavam-se os parentes afins, como pode um corpo de 45 anos aspirar líquido amniótico acrescido de fezes de um recém-nascido?
Os especialistas explicaram que, primeiramente, o desejo de aspiração é algo que se apresenta desde criança e, segundamente, cada um tem o direito de aspirar o que bem entender. Uns aspiram pó, outros aspiram líquido. Uns aspiram ao espírito, outros aspiram à matéria. Para tanto, vale-se mais do desejo do que da tradição. Questões de ordem psicanalítica que somente os especialistas lacanianos são capazes de discorrer a respeito, quando não optam pelo corte ou, mais comum ainda, pelo mais completo silêncio.
            Os envolvidos no problema consideraram justa a explicação, porém, passadas mais 24 horas, lá ainda se encontrava o corpo. Morto, mortinho da silva. Reforçou-se então o pedido: “libere-se o corpo ao responsável”.
            Como os envolvidos se deram satisfeitos pela explicação, renegaram o defunto ao segundo plano e, passadas mais 24 horas, permanecia o corpo envelhecido de Reminda Dolefulina lá na geladeira, sem as respectivas exéquias.
            Foi quando um estagiário, um sujeito magro, muito novo ainda, cabelos compridos, esquelético e de sorriso meio abobalhado, resolveu pôr fim à questão.  Não havia familiares diretos, não havia mais interesse dos envolvidos, apenas o corpo de Reminda ali na câmara frigorífica. Visto constar como causa mortis as ditas fezes de recém-nascido, buscou pela localização da campa da mãe de Reminda e, pelos Correios, dentro de uma caixa de isopor, enviou-se o corpo frio para lá. Com barbante, junto ao dedão do pé esquerdo, acrescentou-se uma etiqueta com o curto epitáfio: “Descanse em paz, Reminda”.
            Acredita o patético estagiário que a estratégia deu certo. Até o presente momento, não houve novas buscas pelo cadáver ou alguma espécie de reclamação que se justifique junto ao serviço de atendimento ao cliente.